Um vĂrus primitivo, presente nos humanos hĂĄ milhares de anos, pode estar sendo ativado pelo coronavĂrus e provocando aumento de mortes em pacientes graves. A hipótese faz parte de um estudo coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz que pode ajudar a compreender por que alguns pacientes graves submetidos à ventilação mecânica conseguem deixar a UTI, enquanto outros não sobrevivem à Covid-19.
A pesquisa indica que a presença do retrovĂrus endógeno humano da famĂlia K (HERV-K) estĂĄ associada não só ao agravamento da doença como também à mortalidade precoce. De março a dezembro de 2020, o estudo "Ativação do RetrovĂrus Endógeno Humano K no Trato Respiratório Inferior de Pacientes com Covid-19 Grave Associada à Mortalidade Precoce" acompanhou 25 pessoas em estado crĂtico que necessitaram de ventilação mecânica. Com idade média de 57 anos, elas estavam internadas no Instituto D"Or e no Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer.
"A progressão de casos brandos para graves vinha sendo associada à hipóxia, inflamação descontrolada e coagulopatia. No entanto, os mecanismos envolvidos com a mortalidade em casos muito graves ainda não são bem conhecidos. Para isso, o estudo buscou compreender o viroma do aspirado traqueal de indivĂduos em ventilação mecânica — isto é, os vĂrus presentes na amostra. Os testes mostraram nĂveis altos de HERV-K, em comparação com exames de pacientes com casos brandos e de não infectados", explicou a Fiocruz.
O coordenador do estudo foi Thiago Moreno, do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em SaĂșde (CDTS/Fiocruz). "Verificamos o viroma de uma população com uma altĂssima gravidade, em que a taxa de mortalidade chega a 80% para ver se algum outro vĂrus estava co-infectando esse paciente que estĂĄ debilitado, imunossuprimido. A nossa surpresa foi encontrar esses altos nĂveis de retrovĂrus endógeno K. É o tipo de pesquisa que parte de uma abordagem completa não enviesada. Isso dĂĄ muita força, muita credibilidade ao achado", explicou o cientista.
Segundo o estudo, o HERV-K é um retrovĂrus endógeno, um vĂrus ancestral que infectou o genoma humano quando humanos e chimpanzés estavam se dissociando na escala evolutiva. Alguns desses elementos genéticos estão presentes nos nossos cromossomos. Muitos ficam silenciosos durante a maior parte da vida, mas parece que, de alguma forma, o Sars-CoV-2 pode ter reativado esse retrovĂrus ancestral. O Ăndice de morte em pacientes graves de Covid-19 chega a 50% entre os que apresentam altos nĂveis de HERV-K.
O estudo estabeleceu ainda uma ligação direta: ao infectar em laboratório uma célula de uma pessoa saudĂĄvel com o Sars-CoV-2, houve um aumento nos nĂveis do HERV-K. "A gente estabeleceu, de fato, que o Sars-CoV-2 é o gatilho para o aumento desses retrovĂrus endógenos, para despertar os genes silenciosos", disse Moreno.
Junto com o aumento dos nĂveis do HERV-K nos pacientes, os pesquisadores perceberam que fatores de coagulação foram mais consumidos, que ocorreram mais processos inflamatórios e que diminuĂram os nĂșmeros de fatores necessĂĄrios para a sobrevivĂȘncia de células do sistema imune. Conforme os nĂveis de HERV-K aumentaram, os nĂșmeros de monócitos inflamados ativados também cresceram. "Esses nĂveis de HERV-K se correlacionaram com o que se chamou de mortalidade precoce, como menos de 28 dias de internação", conta Thiago.
A pesquisa é ainda a primeira evidĂȘncia da presença desse retrovĂrus no trato respiratório e no plasma de pacientes graves de Covid-19. A presença do HERV-K, que ocorre também em outras doenças, como câncer e esclerose mĂșltipla, pode ser usada como um biomarcador associado à gravidade em casos de Covid-19. Sua detecção precoce poderia reforçar o uso de determinadas estratégias, como o uso de anticoagulantes e anti-inflamatórios.
Mas ainda é difĂcil saber por que isso ocorre em algumas pessoas e não em outras. "Esse despertar de genes silenciosos é o que pode fazer a diferença das evoluções. Talvez o sinal para o silenciamento de determinados retrovĂrus endógenos seja mais forte em algumas pessoas do que em outras. Parece estar associada à gravidade essa capacidade do novo coronavĂrus de mudar o perfil epigenético da célula do hospedeiro, ativando inclusive vĂrus ancestrais, alguns deles que deveriam estar adormecidos no nosso genoma", comentou o coordenador do estudo.
Além da Fiocruz, fazem parte da pesquisa cientistas da Universidade Federal de Juiz de Fora, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer e da empresa MGI Tech.
Fonte: AgĂȘncia Brasil