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Psicanalista diz que mundo digital requer nova educação

Ele compara a revolução tecnológica a um tsunami que criou um mundo novo, a "Terra Dois".

Por João Cerino em 22/06/2023 às 10:01:23

A revolução tecnológica é um tsunami que tornou o nosso mundo tão novo, que poderia ser chamado de "Terra Dois". O "Terra Um", que conhecĂ­amos, não existe mais. Esse é o conceito do médico psiquiatra e psicanalista brasileiro Jorge Forbes, pesquisador da pós-modernidade e diretor da ClĂ­nica de PsicanĂĄlise do Centro do Genoma Humano da USP. Ele diz que tantas transformações fizeram com que os cidadãos se sintam "desbussolados" e perdidos. "Nós não estaremos perdidos se começarmos 'ontem' um projeto de educação para evitar os analfabetos digitais que estamos criando". Para Forbes, o analfabetismo digital vai provocar diferenças entre grupos maiores do que entre classes sociais.

O pesquisador conquistou, hĂĄ dez anos, o PrĂȘmio Jabuti pelo livro Inconsciente e Responsabilidade – PsicanĂĄlise do Século XXI e lançou, no mĂȘs passado, o tĂ­tulo PĂ­lulas da PsicanĂĄlise – Aforismos e Sentenças de Jorge Forbes. Para ele, as profissões passarão por transformações, mas caracterĂ­sticas singulares fazem com que pessoas não sejam substituĂ­veis por mĂĄquinas.

Confira abaixo entrevista que o médico Jorge Forbes concedeu à AgĂȘncia Brasil:

AgĂȘncia Brasil - A revolução tecnológica é um tsunami. O senhor pode explicar a expressão "Terra Dois"?

Jorge Forbes - O tsunami tecnológico é um colossal avanço neste momento, como a nanotecnologia, a biotecnologia e a informĂĄtica que estão fazendo uma revolução na forma de vivermos. Um avanço que faz com que a gente se sinta desbussolado, sem caminho. As pessoas não se entendem mais na vida. Nós não nascemos da mesma maneira. Nem educamos, nem namoramos, nem trabalhamos, nem aposentamos. Nem morremos da maneira que a gente fazia até hĂĄ pouco tempo.

Eu acredito que nós estamos vivendo um tsunami dessa mudança do lado social, da maneira humana de ser. Diferentemente dos animais, nós humanos variamos com o nosso ambiente. Uma abelha não varia, uma vaca não varia, um cavalo não varia. São sempre iguais independentemente de onde estiverem. Nós, não. A gente produz diferentemente.

São pequenas mudanças que ocorrem na nossa vida o tempo inteiro. Mas uma mudança maciça como essa, que a gente estĂĄ vivendo, ocorre de séculos em séculos. Durante 28 séculos, nós tĂ­nhamos uma maneira de comportamento que era linear, vertical, hierĂĄrquica, padronizada e, de repente, a gente passou para um mundo horizontal, mĂșltiplo, criativo, variĂĄvel. Essa mudança de valor é tão imensa que justificou, ao meu ver, eu chamar de "Terra Dois".

AgĂȘncia Brasil - Como assim, Terra Dois?

Jorge Forbes - A gente fez um planeta chamado Terra. Terra Um. Nós estamos em outro planeta que nos confunde porque geograficamente é igual ao anterior, mas que nós habitamos de maneira completamente distinta. Só que essa maneira ainda não dominamos. A gente não entende ainda. Então estamos todos em busca de novas chaves de leitura de um mundo, a meu ver, até muito mais interessante do que o anterior, por ser muito mais criativo e mais variado. Por outro lado, essas mudanças tecnológicas repercutem nos campos profissionais.

AgĂȘncia Brasil - De que forma devemos estar preparados para o tsunami?

Jorge Forbes - As pessoas se sentem profundamente inseguras e angustiadas com essa época atual. Falamos de tsunami de forma negativa porque, no primeiro momento, nos amedronta. É até a gente transformar o tsunami que pode nos afogar em uma onda em que possamos surfar.

É necessĂĄrio trazer esclarecimento, trazer passaporte para o lado de cima da onda que faça com que a gente surfe em vez de se afogar.

AgĂȘncia Brasil - É preciso mais preparo e criatividade?

Jorge Forbes - Nós temos atividades na nossa vida que podem ser singulares ou genéricas. As singulares são aquelas que só a gente pode fazer. Pelo talento, pelo gosto, pelo desejo, pela oportunidade, pelo momento. VĂĄrias razões fazem com que sejamos insubstituĂ­veis. Agora, quem substitui um datilógrafo é outro datilógrafo. Quem substitui um motorista é outro motorista.

HĂĄ atividades singulares que não são genéricas. A inteligĂȘncia artificial e toda a tecnologia que estão nos 'tsunamizando' (para criar uma palavra) podem fazer melhor que o humano aquilo que for genérico. Vai dirigir, por exemplo melhor do que nós. Por quĂȘ? Porque em vez de vocĂȘ ter um caminhoneiro, vocĂȘ vai ter uma mĂĄquina que não vai fazer certas atitudes por demais humanas.

Na minha ĂĄrea, que é a medicina, por exemplo, eu sou psiquiatra, mas meus colegas radiologistas que se dedicam a ler raio-X podem ser facilmente ultrapassados pela inteligĂȘncia artificial.

AgĂȘncia Brasil - Estamos perdidos?

Jorge Forbes - Não. Nós não estamos perdidos se começarmos 'ontem' um projeto de educação para evitar os analfabetos digitais que nós estamos criando.

Na medida que se perde o trabalho genérico, a pessoa tem que ser educada para uma nova realidade e para o novo mundo. Isso estĂĄ sendo feito? Não. Isso não estĂĄ sendo feito.

Estamos pensando ainda muito distante de um novo mundo que é tecnológico e não responde mais às ferramentas do mundo anterior.

AgĂȘncia Brasil - O senhor entende que a chave dessa mudança é pela educação que forme cidadãos mais criativos e mais humanos?

Jorge Forbes - Sim. Ao não darmos atenção à revolução digital, estamos criando analfabetos digitais. A distância entre os alfabetizados digitais e os analfabetos digitais estĂĄ prevista como sendo muito maior do que entre, por exemplo, a classe A e a classe D ou E de um paĂ­s.

Se não dermos atenção à tecnologia, haverĂĄ problemas sociais piores do que os problemas econômicos atuais. Porque uma parte importantĂ­ssima da população simplesmente vai ser posta ao relento, vai ser posta em situação de inutilidade total.

AgĂȘncia Brasil - Mas como fazer para que isso não ocorra?

Jorge Forbes - Para que isso não ocorra, temos que avançar muito rapidamente com os processos educacionais para diminuir o analfabetismo digital que se anuncia.

AgĂȘncia Brasil - É possĂ­vel estabelecer um marco dessa mudança?

Jorge Forbes - Não hĂĄ um dia especĂ­fico da mudança. Mas hĂĄ elementos importantes que a gente pode datar. Entendemos que a mudança é, sobretudo, da verticalidade para a horizontalidade. Eu diria que em 1992 houve o surgimento da web, que é o principal elemento horizontalizador das nossas relações.

AgĂȘncia Brasil - Quando a gente fala da horizontalidade, hĂĄ outro olhar preocupado não só no âmbito profissional, mas também nas hierarquias e relações de poder. O senhor acha que isso abala a sociedade tal e qual a gente conhece hoje?

Jorge Forbes - Paradoxalmente, o que a gente mais deseja no mundo é o que a gente mais teme. É liberdade. Liberdade sexual, de culto, de expressão, de amor, de viajar, de pensar. O mundo anterior determinava fatores de escolha determinados. Era certo ou errado. A ou B. Esse mundo agora é de mĂșltiplas opções.

Em um segundo momento, hĂĄ quem adore ter alguém para dizer o que se deve fazer. É o que explica curiosamente que, nesse mundo, onde a liberdade é muito maior do que antes, surjam lĂ­deres tirânicos que se oferecem como segurança para quem estĂĄ com saudade de algo mais estĂĄvel.

Não tem jeito. A globalização é instĂĄvel, mĂșltipla e criativa. Quem quer que a vida seja muito estĂĄvel é aquele que quer que a vida seja um piloto automĂĄtico. Nós temos que inventar cada passo e ir corrigindo a rota.

AgĂȘncia Brasil - Nessas relações horizontais, hĂĄ quem se queixe das quebras de hierarquia e até de comportamento dos mais jovens, desesperançados ou pouco dispostos a ouvir. Isso é um problema também, certo?

Jorge Forbes - O fato de ter novo mundo não quer dizer que seja um paraĂ­so. São novas soluções e novos problemas. É verdade que hĂĄ 30 ou 40 anos os adolescentes eram "mais bem educados", respeitavam os mais velhos, os horĂĄrios, os professores. Enfim, era uma outra realidade, totalmente distinta de hoje, que tem algumas coisas muito desagradĂĄveis.

Mas vocĂȘ tem, por outro lado, essa mesma moçada descobrindo coisas maravilhosas. Eu fiz um trabalho, ao meu ver interessante, sobre o que é essa nova geração mutante e o que faz com a mĂșsica eletrônica.

Eu acho que ela é exemplo incrĂ­vel de um novo tipo de lado social humano, onde as pessoas estão juntas sem necessidade de se compreender.

Eu me debrucei sobre algo que é um fenômeno que passa às vezes despercebido, mas é muito importante. Eles conseguem juntar dois milhões de pessoas para ouvir mĂșsica que não tem letra. Isso é impensĂĄvel para a geração dos pais deles.

Fonte: AgĂȘncia Brasil

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